sexta-feira, 21 de junho de 2013

Do manifesto libertário e popular ao apoderamento pela mídia em uma semana: um guia rápido.

Começou de fato em 2005, quando durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre, formou-se o Movimento Passe Livre (MPL), tendo como principal proposta de luta a tarifa zero. Desde então, o MPL tem atuado como um organizador social, com importantes manifestações e algumas vitórias, como por exemplo as ocorridas em Recife, Aracaju e Vitória. No início de 2013, mediante anúncio de novo aumento das tarifas de ônibus em Porto Alegre, uma onda de manifestações envolvendo estudantes, movimentos sociais e, sim, organizações partidárias de esquerda, obtiveram uma conquista (embora via medida judicial) de revogação da elevação das passagens. Passados alguns meses, as empresas de transporte de Porto Alegre seguiam tentando por meios políticos e judiciais obter o benefício do aumento. Logo, as manifestações continuaram, agora com o propósito de garantir a manutenção da revogação do aumento. Em junho, quando do anúncio do aumento da tarifa do transporte público em São Paulo, o MPL organiza manifestações que se agigantam rapidamente, reunindo milhares de pessoas. A grande maioria da mídia e dos governantes desqualifica as manifestações, taxando os ativistas como baderneiros, desocupados, vagabundos e vândalos. Em seguida, a relativamente óbvia repressão das forças de segurança: balas de borracha, gás lacrimogênio, porrada pura e simples. A revolta ganha força em todo país. De repente, Porto Alegre e São Paulo não estão mais sozinhas. No dia 17 de junho, a maioria das capitais promove gigantescas manifestações, há muito tempo não vistas no Brasil. Eis que a grande mídia, até então vociferando com fúria contra as manifestações, começa uma onda de mudança brusca de opinião. Brusca mesmo: testemunhei apresentadores trocarem de “lado” dentro de um mesmo programa. Começaram a transmissão desqualificando os manifestantes e antes de terminar o programa, já estavam bradando “não é só por 20 centavos”. Mas o pior sinal mesmo é quando a bíblia dos reacionários, a revista Veja, muda sua linha editorial e passa não só a apoiar os manifestos como a conclamar que os mesmos se estendam para outras reivindicações como as genéricas “combate à corrupção e criminalidade”. A partir daí, as coisas começam a mudar com uma velocidade espantosa. Organizações partidárias de esquerda como o PSOL e o PSTU, que desde as primeiras manifestações em Porto Alegre estavam a frente da mobilização, tem que baixar suas bandeiras por que o movimento se torna avesso a qualquer manifestação partidária. O próprio MPL passa a ser criticado por exigir “só” a redução das tarifas. Entram em cena dezenas de novas pautas de protesto, abrangendo os mais diversos tipos de agenda: repúdio a ícones caricatos da pior política (Feliciano, Renan) até manifestações típicas da agenda neoliberal (fim do bolsa-família, diminuição dos gastos públicos). Assombra o poder de mobilização da mídia em despolitizar as manifestações. Desde que passou a “apoiar” os protestos, o tom dos mesmos se alterou bastante. Existe uma intolerância quase raivosa com a identificação política entre os manifestantes, como se tudo não tivesse sido originado pela ação política. O que se vê nas ruas desde ontem já não é mais um movimento pela melhoria e do transporte urbano, uma pauta que é popular, tem caráter socialista e universal. Temos uma força política, forçosamente apartidária em sua aparência, em estado bruto. Multifacetada e contraditória em suas diversas reivindicações. Isso é ruim? Não, de modo algum. Uma geração inteira, majoritariamente estudantes de classe média, está experimentando – talvez muitos pela primeira vez – a sensação única de se perceber parte de uma consciência coletiva, embora só se possa tatear vagamente que forma ideológica esse coletivo terá. Mas ontem, ao fim de uma manifestação, pude ouvir trechos de um diálogo entre alguns estudantes que discutiam se seria possível um governo direto, sem intermediação de dirigentes políticos tradicionais. E lançavam ao ar idéias a respeito de organização por conselhos, por bairros, por associações. Provavelmente, muitos nem suspeitam que estão intuindo, quase que por simples lógica, os fundamentos do anarquismo ou socialismo libertário. Isso sim é digno de nota. Que um leitor de Chomsky, Bakunin, Kropotkin, Malatesta, Rudolf Rocker ou Rosa Luxemburgo conceitue e defina noções de autogoverno e autogestão, é algo totalmente dentro das expectativas. Mas que jovens manifestantes deduzam, através do simples questionamento do “que fazer a partir de agora”, os mecanismos para um modelo de autogestão da cidade e do país, é um fato histórico de extrema importância. Claro que em contraponto a tudo isso, há o visível apoderamento de uma parcela desse vigor revolucionário por parte da minoria reacionária, que é, antes de tudo, contrária a qualquer iniciativa de transferência de renda. Ou alguém pode ser radicalmente contra a bolsa-família e totalmente a favor da tarifa zero? Ambas se baseiam nos mesmos conceitos econômicos e sociais: intervenção econômica do Estado para reparar a desigualdade social entre as classes. Se o bolsa-família é, como alegam alguns, “bolsa-esmola” ou “bolsa-voto”, por que a isenção de tarifas de transporte não seria? A mídia serve aos seus clientes, seus anunciantes. São empresas capitalistas e como tais, sua prioridade primordial é e sempre será o lucro. As tentativas desse segmento empresarial de pautar e conduzir as manifestações daqui por diante obviamente terão o objetivo de atender os interesses dos seus clientes / patrões. Cabe agora aos jovens que conheceram essa outra forma de viver a política (sim, cada manifestação realizada, apartidária ou não, é um ato político) tornarem-se organizadores sociais e, superando a agenda reacionária e pós-fascista que tenta se aderir como parasita ao movimento, conseguir canalizar essa força para propostas de uma nova sociedade. Se os partidos e organizações de esquerda, que historicamente estiveram à frente de todas as lutas sociais travadas nesse país em nome da classe trabalhadora, não forem capazes de apresentar a renovação necessária, com uma proposta de um novo socialismo de caráter libertário, sem cultos personalistas e sem a infalibilidade do determinismo histórico, acabarão por incorporar-se à massa insossa de partidos ideologicamente vazios que tanto proliferam no Brasil.